Em audiência promovida pela Comissão de Educação (CE) na tarde desta quinta-feira (30), debatedores questionaram a viabilidade do projeto que proíbe alterações nos textos da Bíblia. O PL 4.606/2019 já foi aprovado na Câmara dos Deputados. No Senado, a matéria já passou na Comissão de Direitos Humanos (CDH), com o senador Magno Malta (PL-ES) como relator. Na CE, a relatora é a senadora Dra. Eudócia (PL-AL).
Do deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), o projeto "veda qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada, para manter a inviolabilidade de seus capítulos e versículos, e garante a pregação do seu conteúdo em todo o território nacional".
A audiência atendeu a requerimento ( REQ 31/2025 - CE ) apresentado pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que dirigiu o debate. Damares reconheceu que o projeto envolve “questões de elevada complexidade jurídica e social”. Ela disse entender os questionamentos sobre o projeto, principalmente em um momento em que outras demandas parecem ser mais prioritárias para o país. Segundo a senadora, porém, instituições religiosas pediram que a matéria não fosse aprovada sem o devido debate.
— Mais de 80% da população brasileira é cristã e tem a Bíblia como regra de fé e prática. Na verdade, esse projeto fala com a maioria esmagadora da nossa população — registrou a senadora.
O diretor-executivo da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), Erní Walter Seibert, disse reconhecer a boa intenção do autor da proposta. Para Seibert, porém, o projeto pode trazer complicações acadêmicas e legais. Ele lembrou que o hebraico original, em que os textos do Antigo Testamento foram escritos, não tinha vogais — que foram acrescidas depois. Os números dos capítulos e dos versículos foram introduzidos mais de mil anos após a Bíblia ser organizada. Essas medidas, destacou Seibert, poderiam ser questionadas pelo projeto.
O pastor Paulo Nunes, representante do Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas (Conplei), manifestou preocupação com a repercussão do projeto em traduções para as línguas indígenas — que exigiriam, segundo ele, uma linguagem mais prática e acessível.
— Precisamos continuar com a nossa liberdade religiosa, em todos os aspectos. Sou indígena e sou cristão. Tenho livros e uso internet e isso não tira minha essência de ser indígena. Se a Bíblia é a palavra de Deus, não precisa da proteção do projeto — argumentou Nunes.
Para Renato Gugliano Herani, doutor em direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e representante da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), se o projeto passar da forma como está, o Estado se tornaria por lei guardião oficial de um texto sagrado. Herani pediu uma reflexão sobre a proposta e o conceito de Estado laico e lembrou que, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), o controle estatal das questões da fé não está autorizado.
— O Estado passaria a tutelar a sacralidade de um cânon, atuando como um guardião teológico, deslocando o estado laico — apontou Herani, que ainda questionou o interesse público do projeto.
Doutor em teologia pela Universidade de Basiléia (Suíça), Rudolf Eduard von Sinner afirmou que a dinâmica da interpretação e reinterpretação dos textos bíblicos é recorrente do ponto de vista histórico dentro das religiões cristãs. Para o especialista, o projeto é uma ingerência inconstitucional do estado em assuntos de religião e inibiria a liberdade de interpretação das religiões.
— O projeto não estabelece com clareza o objeto de proteção. Se essa lei passar, o Congresso Nacional teria que compor uma comissão para decidir qual versão correta. Não sei se o Congresso quer assumir essa tarefa e é certo que, em algum momento, haveria judicialização da questão — declarou.
Na visão do professor e pastor luterano Walter Altmann, doutor em teologia sistemática pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha, o projeto não é exequível, até por não existir unanimidade sobre uma versão original do texto bíblico. Ele apontou diferentes versões da Bíblia, desde a usada pelo reformador Martinho Lutero, até outras edições mais modernas.
O teólogo Lourenço Steglio Rega disse que a revisão e a atualização das traduções são importantes por vários motivos, desde questões gramaticais e linguísticas, até em razão de novas descobertas arqueológicas. Ele citou 17 versões da Bíblia em circulação no Brasil, com gramáticas, estilos e traduções diferentes e questionou qual texto serviria de base para o objetivo do projeto.
Lourenço Rega, que é doutor em teologia e especialista em grego bíblico, manifestou apoio a uma emenda apresentada pelo senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR), com um texto alternativo para o projeto, em que a ênfase é na liberdade da pregação, com o reconhecimento da legitimidade das versões da Bíblia adotadas pelas diferentes confissões religiosas do Brasil.
— Eu não quero deixar um impasse, mas a emenda é um caminho para achar uma possível resposta — declarou Rega.
De acordo com o pastor e teólogo Franklin Ferreira, o projeto contraria os princípios bíblicos. Ele afirmou que as escrituras sagradas não precisam de proteção humana ou estatal, pois está sob a soberania de Deus. Segundo Ferreira, o projeto confunde o texto original com as versões que surgiram ao longo dos tempos e são usadas hoje em dia. Ele lembrou que versões católicas, protestantes e ortodoxas têm divergência até no número de livros internos da Bíblia.
— Não é a igreja que deve ser tutelada pelo estado, mas o estado que precisa ser julgado pela Palavra de Deus. O projeto é desnecessário e problemático — apontou o pastor.
O padre Cássio Murilo Dias da Silva, doutor em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e presbítero da Diocese de Jundiaí (SP), falou como representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Na mesma linha dos outros especialistas, ele apontou a dificuldade de entender um texto bíblico definitivo que pudesse ser classificado como original.
— Nesse projeto, a Bíblia deixa de ser Palavra de Deus para ser palavra humana ou palavra do Congresso. Optar por um texto seria destruir o esforço para o diálogo inter-religioso e ecumênico. O projeto parece ser algo pessoal do autor, mas não vejo utilidade para a sociedade — ressaltou padre Cássio.
A audiência foi promovida de forma interativa, com a possiblidade de participação popular por meio do portal e-Cidadania . A senadora Damares destacou algumas das mensagens que chegaram até a comissão.
A internauta identificada como Cássia, do Distrito Federal, defendeu o texto bíblico sem alterações. Já César, de Goiás, lembrou que o Estado é laico. Internautas também demonstraram preocupação com uma possível censura a estudos acadêmicos que envolvem textos bíblicos e a versões alternativas da Bíblia, como as que trazem ilustrações para crianças e as versões artísticas em rimas e em cordel.