A audiência de custódia realizada hoje (23/11), por videoconferência na Superintendência Regional da Polícia Federal, em Brasília, expôs um problema estrutural preocupante: a transformação de suposições em fundamentos jurídicos. Mesmo com Jair Bolsonaro explicando tecnicamente a suposta violação da tornozeleira e negando qualquer intenção de fuga, a juíza auxiliar Luciana Yuki Fugishita Sorrentino homologou a prisão preventiva com base em riscos hipotéticos, alimentando uma decisão mais alinhada à lógica política e midiática do que aos elementos concretos.
Durante a audiência, Bolsonaro admitiu ter mexido na tornozeleira eletrônica, dizendo que sofreu uma “certa paranoia” provocada pela combinação de remédios prescritos por diferentes médicos. Ele afirmou que usou um ferro de solda para tentar abrir o equipamento, mas garantiu que não rompeu a cinta, nem planejou uma fuga. Relatou ainda delírios de escuta dentro do monitor, fruto de alucinações. Sobre a vigília convocada por seu filho Flávio, ele argumentou que os apoiadores estavam a cerca de 700 metros de sua casa, o que, segundo ele, inviabilizaria qualquer tumulto que pudesse facilitar uma evasão.
No entanto, a decisão judicial ignorou esses esclarecimentos e manteve a prisão preventiva com o fundamento de “risco de fuga”. A juíza Sorrentino afirmou que, apesar de não ter identificado abuso por parte dos policiais, persistem indícios — ainda que hipotéticos — de comportamento que poderia frustrar a execução penal. O ministro Alexandre de Moraes, autor do mandado de prisão, apontou a combinação entre a violação da tornozeleira e a vigília como elementos de risco.
Esse uso do condicional — “poderia haver”, “possível risco” — como base para uma medida tão drástica quanto a prisão levanta questões seríssimas sobre os limites da cautela no sistema penal. A audiência de custódia, instituída para garantir proteção ao detido, aparentemente serviu aqui mais como confirmação de uma decisão já tomada do que como mecanismo efetivo de salvaguarda.
Além disso, o momento da audiência foi marcado por forte pressão política e simbólica: a mobilização de apoiadores em Brasília, a intensa cobertura midiática e o caráter altamente sensacionalista do episódio contribuíram para moldar a narrativa pública. Decisões dessa gravidade, adotadas em um ambiente tão carregado, suscitam dúvidas sobre a independência do Judiciário frente a pressões externas.
A conversão de hipóteses em premissas jurídicas consolidadas não é apenas um problema teórico — é uma ruptura com o princípio da presunção de inocência. Ao tratar projeções como verdades, a Justiça se afasta do que deve ser seu papel central: julgar com base em provas e evidências, não em especulações. A lógica penal, em sua essência, exige objetividade — não conjecturas.
Se esse precedente for consolidado, abre-se um caminho perigoso: qualquer acusação pode ser construída sobre probabilidades, transformando medidas cautelares em punições antecipadas. A democracia não sobrevive quando a Justiça abandona o terreno seguro dos fatos e se aventura no campo instável das suposições. E a sociedade perde, porque a integridade do processo penal — garantida para todos — é posta em risco.