Levantar, analisar e refletir sobre os dados de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil é urgente, sabemos que em 2023 mesmo estando na metade do ano, os dados já chocam. Aliás, é urgente há muito tempo.
Desde 2019, quando pela primeira vez o Fórum Brasileiro de Segurança Pública conseguiu separar os dados do crime de estupro do crime de estupro de vulnerável, pudemos enxergar que 53,8% desta violência era contra meninas com menos de 13 anos.
Esse número sobe para 57,9% em 2020 e 58,8% em 2021. De 2020 para 2021 observa-se um discreto aumento no número de registros de estupro, que passou de 14.744 para 14.921.
Já no que tange ao estupro de vulnerável, este número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas).
Entendo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública como o documento mais importante para a análise da conjuntura de violências no país e vê-se que, desde 2019, a preocupação com o estupro de vulnerável entrou definitivamente no radar do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Este ano, mais duas violências sexuais contra crianças e adolescentes passam a integrar o Anuário: a exploração sexual e os crimes ligados a exposição sexual por meio de fotografia, vídeo ou qualquer outro meio.
A inclusão destes crimes configura um grande avanço, na medida em que os dados nos permitem migrar da seara da percepção para a constatação.
Então, vamos lá. Comecemos pelo crime com dados mais significativos: o estupro de vulnerável.
Nossa primeira constatação é de que há ainda uma certa incompreensão em relação a importância de separarmos os registros de estupro de vulnerável dos demais.
Tanto é que, dos 66.020 boletins de ocorrência analisados, havia 6.874 que constavam apenas como estupro, apesar das vítimas terem menos de 13 anos.
Este problema se mostrou especialmente sério no Estado do Paraná, onde não se registra este crime de forma específica e as 4.631 ocorrências envolvendo menores de 13 anos precisaram ser identificadas uma a uma.
É preciso que as pessoas (e instituições) entendam a relevância que existe em identificar se a vítima é uma mulher ou uma menina. É verdade que, em ambos os casos, a questão de gênero está presente, mas a construção de estratégias de enfrentamento à esta violência muda completamente em uma situação e outra.
Porque quando temos a clareza de que a maioria das vítimas de violências sexuais são crianças e adolescentes, somos obrigados a pensar em políticas de prevenção e não só de repressão.
Quanto à característica do criminoso, esta continua a mesma: homem (95,4%) e conhecido da vítima (82,5%), sendo que 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avós.
O local da violência também permanece o mesmo: 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa.
Aqui chamo a atenção para algo que temos defendido constantemente, que é a escola como elemento estratégico fundamental para o enfrentamento do estupro de vulnerável.
Isso nos parece muito claro diante da informação que essa violência é preponderantemente intrafamiliar e ocorre dentro de casa. S
abemos que o enfrentamento de violências não se dá apenas no âmbito da segurança pública e acreditamos que este é um exemplo típico disso.
A escola pode ajudar (e já ajuda) no processo de identificação e denuncia, mas, sobretudo, no processo de prevenção.
Muitas vezes o abusador se aproveita da ignorância da criança e, se ela tiver consciência, dependendo da situação, pode mesmo evitar que o abuso ocorra.
Fica aqui uma sugestão: não sabemos quantas denúncias de violência sexual chegam por meio da escola e seria muito interessante ter esse dado, fui Delegada de Polícia e boa parte das denúncias tinham esta origem. Para aqueles que acham que o ambiente escolar é um risco para os filhos, vale aqui lembrar que apenas 1% dos casos registrados ocorreu em estabelecimento de ensino para os filhos, vale aqui lembrar que apenas 1% dos casos registrados ocorreu em estabelecimento de ensino.
Quanto a cor/raça, a maioria dos registros são de meninas brancas (49,7%), seguido de negras (49,4%), amarelas (0,5%) e indígenas (0,4%).
Este dado sobre meninas negras serem menos violadas que brancas sempre me provoca, porque não é essa a percepção que temos.
O estudo “Percepções sobre direito ao aborto em caso de estupro”, realizado e publicado pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão neste ano, entrevistou 2 mil pessoas, das quais 57% acreditam que mulheres e meninas negras são as maiores vítimas de violência sexual no Brasil.
Nós sabemos que mulheres negras são as principais vítimas de violência doméstica e feminicídio, me pergunto se não estamos diante de um dado que nos fala de uma maior subnotificação de estupro de vulnerável de meninas negras em relação as brancas, mas esta é apenas uma suposição.
Em relação ao sexo da vítima, 85,5% são meninas, mas meninos também são vítimas. Interessante aqui observar que o número de registros aumenta conforme a menina vai crescendo, já no caso dos meninos, o número de registros aumenta até os 6 anos (com pico entre 4 e 6) e depois começa um processo de queda.
Penso aqui em duas hipóteses: a primeira é de que, em um país machista como o nosso, os meninos vão sendo mais respeitados conforme crescem e deixam de ser objeto desta violência; a segunda é de que, justamente por sermos um país machista, os meninos, por constrangimento, denunciam ainda menos que as meninas as violências sexuais que sofrem.
Vamos agora falar do enorme desafio que é tratar da exploração sexual de crianças e adolescentes.
Não é o primeiro ano que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública levanta os dados deste crime, mas é a primeira vez que ele será publicado no Anuário. Se olharmos para o número de registros, 733 casos em 2021 e 683 em 2020, nem parece ser um problema que requer maior atenção.
Mas, na verdade, o que este dado explicita é o imenso descaso com que este crime é tratado pela sociedade.
Um mapeamento feito em 2020 pela Polícia Rodoviária Federal com a Childhood Brasil aponta que, só nas rodovias federais, há 3.651 pontos de exploração sexual infantil, e só temos 733 notícias deste crime? Alguém realmente acredita que, durante todo o ano de 2021, só houve 1 caso de exploração sexual no Distrito Federal, 2 casos no Amapá e Roraima e 3 casos no Acre e na Paraíba? Talvez a explicação para essa baixa notificação possa vir de uma pesquisa de 2018 encomendada pelo Instituto Liberta para o DataFolha sobre a percepção da sociedade a respeito da exploração sexual de crianças e adolescentes, 100% dos entrevistados sabiam que era crime pagar por sexo para alguém com menos de 18 anos, mas do universo de pessoas que já tinha visto ou sabiam de uma situação desta, apenas 29% denunciaram, porque nestes casos, a tendência é culpabilizar a menina pela violência sofrida.
Em relação aos registros criminais de pornografia infanto juvenil foram 1.797 em 2021 contra 1.767 em 2020.
Muito importante falar desta violência que, infelizmente, tende a crescer, por isso é fundamental que todos se atualizem e estejam atentos a estes crimes.
No Estado do Espírito Santo, por exemplo, essa categoria não existe no sistema eletrônico que reúne os Boletins de Ocorrência, o que deve ser feito o mais rápido possível.
O fato é que crianças e jovens estão cada vez mais conectados pelas mídias sociais, o que representa um risco em potencial.
Se sabemos que a conexão pela internet é uma realidade que está e tende a estar cada vez mais presente, então, precisamos falar com as crianças e os adolescentes sobre os perigos e riscos.
Mas falar de verdade! E aqui, de novo, a escola tem um papel fundamental. Muitas vezes os pais não estão preparados para esta conversa, mas a escola tem que estar. Escolas públicas e privadas, pois crianças e adolescentes de todas as classes sociais estão sujeitas a estes crimes.
De novo se verifica o fenômeno do crescimento de registros conforme aumenta a faixa etária da vítima. Temos uma maior concentração na faixa dos 10 aos 14 anos, com 990 casos, seguida de 15 a 17, com 523.
Quando olhamos para os dados dessas violências e comparamos 2020 e 2021 separadamente por Estados, verificamos que alguns tiveram aumento nos registros, outros diminuição, no entanto, a situação do Mato Grosso do Sul se destaca pela alta taxa de registro de estupro de vulnerável: 73 casos por cada 100 mil habitantes, seguido por Roraima com 64,8 e o Acre com 50,6. Também nos casos de exploração sexual e crimes de pornografia os números do Mato Grosso do Sul chamam nossa atenção.
No primeiro caso a taxa de registro por 100 mil habitantes da faixa etária respectiva chega a 24 para adolescentes entre 15 e 17 anos e 15,2 para vítimas entre 10 e 14 anos, bem maior que a média dos outros Estados.
E no segundo, apesar de São Paulo em números absolutos ser de longe o Estado com mais registros, quando olhamos para a taxa de ocorrência vemos que, de novo, o Mato Grosso do Sul, com uma taxa de 16,4 por 100 mil habitantes na faixa etária de 0 a 17 anos, contra 2,4 de São Paulo.
Olhando os números, a situação do Mato Grosso do Sul é preocupante, mas meu otimismo não resiste a uma provocação: será que eles não estão, na verdade, fazendo um ótimo trabalho de registro e vencendo a subnotificação de forma mais eficiente que os demais? Faço este comentário porque frequentemente me perguntam se a violência sexual contra crianças e adolescentes está aumentando, já que os dados apontam para isso.
Sempre respondo que não sei, mas que acredito que o aumento de registros no caso desses crimes é um bom sinal, pois me parece que o que está aumentando é a notificação, não o crime em si. Estamos conseguindo tirá-los da invisibilidade.
Enfim, fala-se muito de falta de dados, de subnotificação, o que é mesmo uma realidade, mas o fato é que este dado – mais de 4 meninas de menos de 13 anos estupradas por hora no Brasil – existe.
Por que não estamos falando disso cotidianamente? Trata-se de uma violência estrutural, que precisa entrar na pauta da sociedade.
Nós, adultos, precisamos romper o silêncio, pois só as nossas vozes serão capazes de provocar consciência e impulsionar a discussão para construção de políticas públicas capazes de mudar esta realidade.
As informações contidas nesse texto foram divulgadas pelo Anuário de Segurança pública de 2022 feito pela equipe Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A denúncia de abuso sexual pode ser feita: - Promotoria de Justiça da Vara da Infância e Juventude. - Ao Conselho Tutelar. - Ao “Disque 100” – Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) – Ligação anônima.