Publicado originalmente na GAZETA DO POVO – Escrito por William Douglas e Thiago Rafael Vieira
O artigo 19, I da Constituição brasileira foi revogado e onde se lê “inviolável” no artigo 5º, VI da mesma Constituição, leia-se, “violável”. É isso mesmo: não temos mais liberdade de crença no Brasil e muito menos Estado Laico. Acabou! Está inaugurado o Estado teocrático LGBTQI+. Pelo menos é a vontade de alguns e, salvo se corrigida pelo Tribunal, até do Judiciário do DF.
Em 02 de junho de 2023, do ano do nascimento de Jesus Cristo, a Juíza de Direito da 4ª Vara Cível de Taguatinga, no processo nº 0708412-98.2023.8.07.0001, pasmem, em sede liminar, diz que um pastor evangélico não pode falar em pecado e inferno no púlpito de uma igreja. Vejam o absurdo jurídico, caros leitores:
Então, segundo a Juíza, falar que tal prática é pecado e resulta no Inferno é discriminatório, degrada, inferioriza, subjuga e levam a intolerância ou discriminação e podem ser considerados crime. Em suma, o cidadão brasileiro não tem mais liberdade religiosa para falar de suas crenças? Não se pode mais falar em pecado? Vale lembrar que a Bíblia diz que o salário do pecado é a morte e o dom gratuito de Deus é a vida eterna, como está em Romanos 6.23. Mas, não fiquemos apenas nos pastores: os padres também acreditam em inferno e pecado e possuem visão semelhante quanto à ética sexual e homossexualidade, assim como os muçulmanos e judeus.
Durante o Talibã, não se podia falar em nenhuma outra divindade que não a seguida pelo referido regime. Aqui, estamos indo mais fundo: todas as religiões estão a caminho de serem caladas, a prevalecer a decisão, que é mais fundamentalista que a do próprio Talibã.
Particularmente, não apreciamos a forma de abordagem do pastor objeto da medida judicial. Pensamos que possa ter faltado mencionar outros pecados que também levam ao inferno, como a mentira, a fofoca, o adultério e a corrupção. Todavia, essa é a nossa visão do cristianismo, além do que a homília (pregação) era dele, que, do ponto de vista da Constituição Federal, não é melhor nem pior do que a do referido pastor. Nós, nem como cristãos e muito menos como professores de Direito, temos legitimidade ou autoridade para validar o que seria o “espírito cristão” ou a forma correta de exercer essa fé.
O versículo bíblico que citamos, de per se, desmonta qualquer argumento de que falar em pecado e inferno resulta em discriminação, degradação, inferiorização ou subjugação do outro. A pessoa religiosa fala em pecado e inferno exatamente porque não quer que as pessoas que praticam determinado ato, o qual a sua crença ensina que é pecado (como o ato homossexual para a grande maior dos cristãos), vão para o inferno. O pastor e/ou qualquer fiel quando diz que a prática homossexual resulta no inferno deseja exatamente o contrário, isto é: o dom gratuito de Deus que é a vida Eterna!
Mais: mesmo que não fosse essa a intenção, trata-se de questão religiosa, na qual qualquer um crê o que bem entender e tem o direito de se manifestar sobre sua crença, seja ela boa ou ruim, positiva ou negativa. E, anote-se, o Estado não tem o poder de dizer, no tema religioso, o que é “bom” ou “ruim”, só o próprio cidadão pode fazer isso. E, repita-se, mesmo que algo seja tido como “ruim” pela maioria da população isso não retira do cidadão o direito de seguir a religião que bem entender.
Outro ponto essencial é que “inferno, céu, vida eterna, pecado” são todos dogmas religiosos e de cunho espiritual. A discriminação que degrada, inferioriza ou subjuga guarda relação com atos humanos de natureza física e psíquica, para guardar relação com natureza espiritual, teríamos que ter um juiz formado em teologia que usasse a teologia para dizer que fala de tom espiritual é ou não discriminatória! O juiz se tornaria um religioso e, como todo religioso, não pode impedir a crença distinta.
A meritíssima Juíza de Direito que tachou o dogma religioso “inferno” de discriminatório é formada em Direito, em seu concurso público foi aprovada por ter alcançado o percentual de êxito em questões relacionadas ao Direito! E, como magistrada ela deve usar o Direito para julgar, nunca a teologia e/ou suas impressões teológicas e espirituais sobre determinados Dogmas, até porque ela é juíza de Direito no Brasil e não no Afeganistão.
A juíza de Taguatinga exerce uma função de Estado e no exercício dessa função fala pelo Estado e, para chegar à conclusão de que falar em inferno num discurso é discriminatório, precisa necessariamente acreditar que céu e inferno existem, contudo no caso brasileiro o Estado não é e não PODE ser religioso, logo não pode acreditar em céu e inferno, por conseguinte não pode considerar que um discurso sobre inferno é de ódio.
Nenhum magistrado pode dizer que o inferno é ruim, degradante e discriminatório. Só quem pode dizer isso é um padre, pastor, rabino, babalorixá etc., todos de acordo com as suas visões doutrinárias, isto porque, como já dito, o Brasil é um Estado laico e as organizações religiosas possuem total autonomia de organização, funcionamento e estruturação interna, conforme o art. 19, I (CRFB/88) + art. 5º, VI (CRFB/88) + art. 44, § 1º do Código Civil,
Se o cristão, o muçulmano, ou qualquer outro, não puder falar mais de inferno no Brasil é melhor que institucionalizem a perseguição a todas as religiões, como acontece na Coréia do Norte, para que rasguem e queimem a Bíblia e o Corão na praça pública de uma vez! A situação é tão surreal que basta uma pesquisa rápida no google para retornar que a Bíblia usa 54 vezes a expressão inferno e 684 vezes a expressão pecado. Ou seja, ser cristão implica em ter estes dogmas. Aliás, se a moda pegar, vai ter magistrado evangélico colocando católico na cadeia, porque, afinal de contas, segundo a Unan Sanctam e o Concílio de Trento, “não há salvação fora da Igreja Católica Apostólica Romana”, “discurso de ódio” claro contra os evangélicos que vão tudo para o inferno… ou, magistrado católico colocando evangélico na cadeia, porque há evangélicos que dizem que os católicos são “idólatras” e por isso vão para o inferno. Haja presídios!!
O pior, “o fim da várzea”, é a Juíza afirmar que “supostas interpretações religiosas que em grande parte também não refletem o espírito cristão”!
Oi?!?! Por que “supostas interpretações religiosas?” Como uma juíza de direito pode afirmar em uma decisão judicial que alguma interpretação religiosa é “supostas”? Qual a base técnica, científica, jurídica para analisar o que é, do ponto de vista religioso, “suposto” ou “verdadeiro”?
Indo além, como dizer que interpretações religiosas “não refletem grande parte do espírito cristão”? O que é espírito? Um juiz falando de espírito?? O que a interpretação de um Juiz de Direito sobre inferno e pecado tem a ver com a aplicação do Direito no caso concreto? Qual a legitimidade de uma juíza para determinar qual é o “espírito cristão”? Qual o cristianismo que a magistrada tomou como referência? O católico romano de qualquer uma das 24 igrejas, em seus seis ritos, que formam o catolicismo romano, o católico ortodoxo diafisita ou miafisita, o evangélico tradicional, pentecostal, neopentecostal, calvinista, luterano, pelagianista, anabatista, arminiano? Teria essa juíza a régua medidora de qual é o cristianismo “correto”? Afinal, em dois mil anos tivemos as maiores discussões sobre o tema, mas é de uma Vara de Taguatinga onde finalmente saiu a certeza do que é o “espírito cristão”? Será que o Papa e os pastores agora deverão se consultar com a eminente magistrada para validar o teor adequado do “espírito cristão”?
O Brasil não é Laico?? Vejamos o que diz o artigo 19, I:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
A Constituição diz que é VEDADO a qualquer ente estatal EMBARAÇAR o funcionamento dos cultos religiosos. Querem embaraço maior do que decidir que um pastor, no púlpito, não pode dizer que homossexualidade é pecado? ou que o pecador vai para o inferno?
A crença das pessoas no Brasil não é INVIOLÁVEL?? A Constituição diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Leitores, o que configura a crença e a consciência da pessoa religiosa são exatamente os dogmas, valores morais e a teologia da religião que aderiu. É notório e já falamos aqui diversas vezes aqui na Gazeta que a moralidade (teologia) é elemento essencial da religião, sem este elemento a religião deixa de existir.
A verdade é que cada cristão tem autonomia para definir o que entende como “espírito cristão”. Em algumas igrejas, como a católica apostólica romana, quem discorda da posição da igreja deve ou pode ser retirado dela. Nos meios evangélicos, é comum que quem discorde saia do grupo e crie um novo. E todos são lícitos perante o Estado laico.
Ainda, a juíza, que talvez seja teóloga de uma escola minoritária do cristianismo, diz que a intepretação do pastor não reflete o espírito cristão. Bem, talvez no seminário que ela tenha, se for o caso, se formado ou na igreja que ela, talvez, se for o caso, seja pastora haja entendimento diverso. Se assim for, com certeza, ela tem toda liberdade para crer como quiser, mas de forma nenhuma afirmar que a sua interpretação é o que se coaduna com o “espírito cristão” e, pior, uma decisão judicial! Isto é, simplesmente uma imposição de sua visão teológica goela abaixo via decisão judicial! É usar o poder do Estado para impor uma visão religiosa. Um caso de conversão forçada com uso da chancela do Estado em pleno século XXI!
Uma curiosidade é que a magistrada diz agir em nome da nome da tolerância. John Locke deve estar se remexendo no caixão, pois tolerância é exatamente o oposto disso, vejam o que Locke escreveu sobre tolerância em sua famosa “Carta sobre a Tolerância”:
“Ademais, assim como não tem o poder de impor, mediante suas leis, ritos ou cerimônias a nenhuma Igreja, o magistrado também não pode proibir aqueles estabelecidos, aplicados e praticados por alguma Igreja, porque fazê-lo destruiria a própria Igreja, cujo propósito é o culto de Deus livremente formulado à sua maneira.”
Importante salientar que a juíza erra feio ao dizer que a afirmação do pastor não representa “o espírito cristão”. Além dos motivos já explicitados, erra feio também porque a maioria da igreja cristã no Brasil e no mundo acredita em inferno, pecado e que a prática homossexual é pecado (e, também poderia ser a minoria, de qualquer forma o Judiciário não poderia se meter nisso). Vejamos o que dizem as duas maiores igrejas cristãs do Brasil. Assembleia de Deus, quase 25 milhões de membros: Declaração de Fé das Assembleias de Deus professa que:
“Cap XXIII – Sobre o Mundo Vindouro 4. O destino dos condenados. O destino dos incrédulos é a condenação eterna no Inferno. As Escrituras Sagradas revelam que o Inferno é “o lugar preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41); o lugar para o qual é destinada a alma dos ímpios e de todos os que rejeitam o plano de Deus para sua salvação”. E, quanto a homossexualidade, a mesma Declaração diz: CAPÍTULO XXIV. SOBRE A FAMILIA (…) Rejeitamos o comportamento pecaminoso da homossexualidade por ser condenada por Deus nas Escrituras, bem como qualquer configuração social que se denomina família, cuja existência é fundamentada em prática, união ou qualquer conduta que atenta contra a monogamia e a heterossexualidade, consoante o modelo estabelecido pelo Criador e ensinado por Jesus.
Já a maior denominação cristã do mundo e do Brasil (quase 125 milhões de fiéis), a Igreja Católica Apostólica Romana, diz em seu catecismo:
2357 A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que experimentam uma atracção sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo sexo. Tem-se revestido de formas muito variadas, através dos séculos e das culturas. A sua génese psíquica continua em grande parte por explicar. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves a Tradição sempre declarou que «os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados» (104). São contrários à lei natural, fecham o acto sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afectiva sexual, não podem, em caso algum, ser aprovados. (…) 2396. Entre os pecados gravemente contrários à castidade, devem citar-se: a masturbação, a fornicação, a pornografia e as práticas homossexuais. 1035. A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, «o fogo eterno» (632). A principal pena do inferno consiste na separação eterna de Deus, o único em Quem o homem pode ter a vida e a felicidade para que foi criado e a que aspira.
Pois bem, para terminar, porque essa matéria já tá grande demais, a decisão da juíza de Taguatinga:
Nós já alertávamos aqui que o diabo seria cancelado e o inferno extinto, aconteceu, na 4ª Vara Cível de Taguatinga. Esperamos, que o Tribunal de Justiça do DF corrija essa decisão teratológica (e até teológica!) o quanto antes para fazer cessar as dez afrontas acima enumeradas. Vamos retomar o Estado laico: pastor e padre não prolatam sentenças e juízes não dispõem sobre o céu e o inferno. Que Deus nos ajude e a Constituição nos proteja!
Por William Douglas e Thiago Rafael Vieira.
Thiago Rafael é advogado, professor de Direito Religioso, escritor com diversas obras publicadas. É doutorando, mestre e pós-graduado em Direito e pos-graduado em Teologia e Bíblia.
William é jurista, professor de Direito Constitucional e escritor com 68 livros publicados. É mestre em Direito e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo.